17.2.07
cordeiro e não mártir
Mártir: 1. Quem sofreu torturas ou a morte, por sustentar a fé cristã; 2. Quem sofre muito. (Aurélio)

Achei interessante essa definição, principalmente pela primeira parte. Se bem me lembro dos resultados de alguns estudos que fiz, pode-se falar de três tipos de mártir: 1) aquele em potencial, sendo perseguido por causa do testemunho que dá de sua fé; 2) aquele que realmente foi martirizado (sofreu tortura ou morte) pela sua fé; 3) todos aqueles que eram alvo da perseguição coletiva empregada pelos romanos contra os cristãos. Mártir é uma palavra de origem grega - martys -, que significa "testemunha". Compartilha da mesma raiz que martyria (testemunho) e martyromai (dar testumunho, testificar, afirmar).

De certa forma, a grande personagem do cristianismo - Jesus - foi um mártir, visto que ele morreu por uma causa: pelo perdão dos pecados da humanidade. E foi um mártir voluntário segundo a fé cristã. Os seus discípulos, desde os chamados apóstolos, também foram mártires voluntários, pois sofreram e morreram em nome de uma causa: proclamar a fé cristã.

Chegou um momento da história do cristianismo, principalmente a partir da metade do século I até a oficialização do cristianimo como religião oficial, no qual ser mártir era sinal de status. Os crentes, voluntariamente, se entregavam ao martírio a fim de galgar um lugarzinho melhor no paraíso, e conseguir um espaço entre os nomes mais badalados na história da igreja.

Depois que o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Católico Romano (processo iniciado em 313 d.C com a conversão de Constantino), acabou a farra do martírio por perseguição devido a profissão de determinada fé. Contudo, o sofrimento em nome da fé continuou, mas agora sendo exercido por meio do auto-flagelamento (coisas que vemos ainda hoje como chicotear-se, passar fome, etc., principalmente no mundo islâmico). Tudo tinha como objetivo proclamar a fé cristã e denunciar a pecaminosidade do mundo. Sem contar que isso também garantiria um bom lugar no céu.

Todas essas práticas de sofrimento, seja o sofrimento oriundo de perseguição ou pelo auto-flagelo, sempre eram feitos voluntariamente (não vamos entrar na discussão se as pessoas eram manipuladas ou não pelo sistema). E segundo a perpectiva histórica cristã, foi graças ao testemunho de fé dos mártires, suportando todo tipo de sofrimento, chegando até a morte, que a fé cristã alcançou ao mundo e hoje é uma das maiores religiões mundiais. Foi graças a prova de fé dos cristãos que o mundo conheceu o poder e a verdade do cristianismo.

Falei tudo isso por que nessas semanas na qual o principal assunto no Brasil foi a morte do menino João Hélio, ouvi alguém dizer que ele é mais um mártir da história do Rio de Janeiro. Concordo em certo ponto, pois, na definição dada no começo, mártir é alguém que sofre muito. E não preciso me referir nem ao sofrimento da família, e muito menos ao dele.

E confesso que me soou estranho num primeiro momento, porque para mim, mártir é sempre alguém que voluntariamente se entregou ao sofrimento em nome da causa na qual acredita. É testemunha voluntária da verdade que proclama. E no caso do menino, não percebo voluntariedade alguma no seu ato. Muito pelo contrário.

Me parece que estamos transformando o menino em mártir porque nós temos medo de sermos testemunha da verdade que "defendemos". Ouço todos falando sobre justiça, segurança, direito a vida. Mas não vejo ninguém se voluntariando a sofrer por essa causa. Infelizmente precisamos que outras pessoas morram para que possamos utilizar o sofrimento delas para proclamar aquilo que acreditamos. Somos covardes e necessitamos sempre de um cordeiro para pagar pelos nossos pecados.

Infelizmente sacrificamos a vida de um menino em nome de um desejo coletivo, pois nem uma única pessoa tem coragem de ser mártir por essa causa. João Hélio não é um mártir. É sim mais um cordeiro sacrificado, como consequência do nosso pecado de não assumirmos a tarefa de ser mártires em nome da vida.

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