“... um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente perdido”.*
Não há volta. Nem mesmo o retorno para nossos lares, dia após dia, não se constituí assim. Não nos confundamos: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”**, já dizia Heráclito. A aparente permanência das coisas no mesmo lugar não caracteriza a nossa volta ao ponto do qual partimos.
Estamos fadados a continuar sempre indo, e esse é o grande fardo colocado sobre nós, pois nunca sabemos o que há a seguir; seguimos no máximo com vagas idéias de possíveis acontecimentos. Por isso a idéia do retorno é reconfortante, porque, ao voltar, pensamos ir de encontro ao já conhecido.
Engano. Ao sair, mudamos. E ao mudar, as coisas mudam, porque enxergamos o mundo a partir das ocorrências em nosso interior. A organização do mundo exterior está condicionada à ordem do nosso interior. Um segundo que nos muda interiormente é suficiente para reconfigurar toda a estrutura do universo; um segundo é o suficiente para transformar o amor em ódio.
O desejo pelo retorno é fruto da insegurança da ida. E a frustração com a volta é a descoberta que continuamos indo. Daí a re-volta: o desejo de voltar de onde voltamos. Isso caracteriza a nossa vida: uma contínua ida por um caminho aparentemente igual, mas interiormente sempre novo, sempre desconhecido, nunca seguro.
Não há retorno. Há sempre a ida, mesmo para aqueles lugares aparentemente conhecidos, que, quando vistos novamente, se revelam sob nova faceta, instigam outras perguntas, geram inesperadas inseguranças e se desvelam um caminho ainda a ser conhecido.
“Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas...” diz de outro modo Heráclito. E tudo é “cinicamente perdido”, diz Kundera. Voltar para recuperar algo; retornar para continuar o não-terminado; re-voltar para colocar as coisas no lugar onde anteriormente estavam, são apenas modos de confessar nossa fraqueza diante do peso da ida, e nossa insegurança do desconhecido porvir.
Por isso, eu não voltei, pois aquilo tudo já perdi.
Assumo o peso, e continuo indo.
*Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. Nova Fronteira, 1985.
**Heráclito. Os pensadores originários. Vozes, 2005.
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