24.3.08
da volta
“... um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente perdido”.*

Não há volta. Nem mesmo o retorno para nossos lares, dia após dia, não se constituí assim. Não nos confundamos: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”**, já dizia Heráclito. A aparente permanência das coisas no mesmo lugar não caracteriza a nossa volta ao ponto do qual partimos.

Estamos fadados a continuar sempre indo, e esse é o grande fardo colocado sobre nós, pois nunca sabemos o que há a seguir; seguimos no máximo com vagas idéias de possíveis acontecimentos. Por isso a idéia do retorno é reconfortante, porque, ao voltar, pensamos ir de encontro ao já conhecido.

Engano. Ao sair, mudamos. E ao mudar, as coisas mudam, porque enxergamos o mundo a partir das ocorrências em nosso interior. A organização do mundo exterior está condicionada à ordem do nosso interior. Um segundo que nos muda interiormente é suficiente para reconfigurar toda a estrutura do universo; um segundo é o suficiente para transformar o amor em ódio.

O desejo pelo retorno é fruto da insegurança da ida. E a frustração com a volta é a descoberta que continuamos indo. Daí a re-volta: o desejo de voltar de onde voltamos. Isso caracteriza a nossa vida: uma contínua ida por um caminho aparentemente igual, mas interiormente sempre novo, sempre desconhecido, nunca seguro.

Não há retorno. Há sempre a ida, mesmo para aqueles lugares aparentemente conhecidos, que, quando vistos novamente, se revelam sob nova faceta, instigam outras perguntas, geram inesperadas inseguranças e se desvelam um caminho ainda a ser conhecido.

“Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas...” diz de outro modo Heráclito. E tudo é “cinicamente perdido”, diz Kundera. Voltar para recuperar algo; retornar para continuar o não-terminado; re-voltar para colocar as coisas no lugar onde anteriormente estavam, são apenas modos de confessar nossa fraqueza diante do peso da ida, e nossa insegurança do desconhecido porvir.

Por isso, eu não voltei, pois aquilo tudo já perdi.
Assumo o peso, e continuo indo.


*Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. Nova Fronteira, 1985.
**Heráclito. Os pensadores originários. Vozes, 2005.

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posted by rafael at 00:05 | Permalink |


5 Comments:


At 24 março, 2008 16:04, Anonymous Anônimo

Até que enfim...
Limpou o porão direitinho?

Já estou com as cópias da chave. rs

Beijos,
Paola.

 

At 24 março, 2008 20:15, Anonymous Anônimo

Eu vou me martirizar após citar esse autor, mas... num dos livros do Paulo Coelho conta a história de um alquimista ou mago (ele adora esses termos místicos não?) que sai em busca de conhecimento em terras distantes e no final da jornada, regressa pra casa, quase frustrado. Quando se dá conta que o que procurava estava o tempo todo com ele.

Culpa dessa nossa ansiedade de querer sempre mais e melhor.

Eu concordo que as coisas não voltam, não existe volta. Posso ser condenada, mas não acredito nem em perdão. Acredito sim em continuar em frente, sacodir a poeira e caminhar olhando ora pro chão (pra não cair) ora pro horizonte (pra não perder a direção).

No mais, a gente não caminha sozinho, por mais que as vezes nos sintamos sós.

Bjs!

 

At 25 março, 2008 01:17, Anonymous Anônimo

a veia do ensaio salta e volta ainda um milhão de vezes melhor. veia não, artéria.

excelente reflexão, principalmente sobre a parte em que a frustração com a volta é a percepção de que ainda se está indo. grandes sacadas, boa é a coisa de explorar o óbvio. ninguém vê.

só discordo com a Poetriz porqeu...tem jeito? citar Paulo Coelho quando na chamada estvam Heráclito e Kundera soa sacana demais (se bem que é tudo da lei, da lei), mas...bem, a volta do Mago (que no P.C. não é termo, é convicção steak-identitária) não tem a ver com o que diz o rapaz aí. Nada está conosco além da morte (não é essa a conclusão do Rabbit - há! belo trocadilho, acordei meio totalitária). Não há posse, não há lugar de chegada, não há referência.
Temos a jornada, a sucessão de coisas irrepetidas e fim.


Prozac ajuda.
é isso.

 

At 25 março, 2008 08:47, Blogger POEIRAS AO VENTO

Vê meu amor, ja estou perdendo a coragem de achar o que quer que eu tivesse de achar, estou perdendo a coragem de me entregar ao caminho e já estou nos prometendo que nesse inferno acharei a esperança...Nada volta, tudo se contorna...Numa imensa curva de fim.

 

At 25 março, 2008 19:14, Blogger Sandra Leite

Eu quero e mereço um amor a la Kundera. Entendeu o pq né? ;)

beijos e cheiros

 


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