29.11.06
deixo o poeta falar por mim
Depois do meu último texto, me perguntaram se eu realmente creio em alguma coisa. Bom, não achei melhor resposta do que a dada por Alberto Caeiro.

Há metafísica bastante em não pensar em nada

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
 
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17.11.06
se sou cristão
Quando perguntam se sou cristão, fico em dúvida sobre a resposta a ser dada, porque nunca sei exatamente o significado de "ser cristão" na qual está envolta a pergunta.

Se ser cristão é crer em pelo menos um dos infinitos dogmas oficiais e discordantes entre si, professados pelas igrejas ao longos dos séculos, então não sou cristão.

Se ser cristão é acreditar no "cristianismo populacho" vivido pela maioria dos crentes, com seus usos e costumes, crendices, superstições, obediência irrestrita a lideres, visão miope e preconceituosa da realidade, então não sou cristão.

Se ser cristão é estar inserido num gueto fechado de indíviduos, pensando que uma possível divindade se alegra somente com eles e apoia o seu desprezo para com quem discorda deles, então não sou cristão.

Se ser cristão é pensar na recompensa do além, então não sou cristão.

Se ser cristão é considerar qualquer prazer dessa vida pecado, então não sou cristão.

Se ser cristão é trocar a vida aqui por uma no além, então não sou cristão.

Se ser cristão é negar o diferente, o crítico, a dúvida, e afirmar a ignorância ao invés da reflexão, seja pela fuga do conhecimento sobre tudo ou pela preguiça de buscá-lo, então não sou cristão.

Se ser cristão é amar a deus antes das pessoas, então não sou cristão.

Se ser cristão é precisar ter deus como justificativa para tudo, então não sou cristão.

Ser ser cristão é ser santo a partir da negação do mundo, então não sou cristão.

Se ser cristão é aceitar ao menos um desses elementos já rejeitados por mim, então você está certo: não sou um deles. Sou um desviado e condenado a pagar o preço por essa decisão, principalmente o estipulado pelos que se auto-denominam assim.

Se existe alguma forma de ser cristão, que não se baseie nessas as quais eu já rejeitei por não me conduzir a paz comigo mesmo, estou curioso em saber. Se não houver, não ser identificado como cristão, atualmente me traz uma grande satisfação.

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posted by rafael at 23:30 | Permalink | 0 teste tua chave
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5.11.06
por que é mais fácil desdenhar do que elogiar?
Numa de nossas produtivas conversas de república, o toninho surgiu com a seguinte questão: "porque é mais fácil desdenharmos de alguém do que proferir elogios?" (é claro que não foram essas as exatas palavras. O floreamento aqui é somente para fins literários). Recordo apenas que as repostas foram: "é verdade"; "boa pergunta" e "pois é, não deveria ser assim". Por esses dias, Aristóteles, enquanto conversavamos por meio da obra "Poética", ofereceu-me uma possível resposta.

Estavamos divagando sobre sua concepção de poesia, e duas espécies da sua chamada "poesia imitativa" clamaram por minha atenção: a comédia e a tragédia. Ele me dizia sobre a tragédia: "é pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o 'terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções'" (1449b24). "A epopéia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitação de homens superiores" (1449b9). E sobre a comédia ele explicou: "A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; quem bem demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor" (1449a32).

Fiquei interessado, principalmente com aquela história de "imitação", e perguntei o que ele queria significar com isso. Aí me disse: "Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso dos difere dos outros viventes, pois, de todos, ele é o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado" (1448b4). Então me caiu a ficha: a poesia nasce da imitação de algo vivencial do ser humano; os poetas imitam a vida.

E percebi que a comédia sempre imita um certo tipo de pessoa. E ele confirmou isso: "mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou baixa índole (porque a variedade de caracteres só se encontra nestas diferenças [e, quanto a caráter, todos os homens se distinguem pelo vício ou pela virtude]), necessariamente também sucederá que os poetas imitam homens melhores, piores, ou iguais a nós, como fazem os pintores" (1448a1).

Assim ficou fácil perceber que a diferença entre a tragédia e a comédia estava no tipo de pessoa que elas imitam, e assim ele confirmou: "pois a mesma diferença separa a tragédia da comédia; procura, esta, imitar os homens piores, e aquela melhores do que eles ordinariamente são" (1448a16).

Logo que ele me disse isso, eu sorri e disse: acho que você tem razão, pois não lembro de ter visto algum tipo de comédia, seja em filme, livro ou piadas que se refira a algo nobre no ser humano. Ela sempre enfatiza a desgraça, o defeito, as trapalhadas, efim, tudo aquilo que ridiculariza a pessoa. E acrescentei: mas a comédia somente é engraçada quando se refere a alguém que não seja nós. São raras as ocasiões que fazemos comédia com nossa própria pessoa.

E ele acrescentou: "A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]. Os de mais alto ânimo imitam as ações nobres e das mais nobres personagens; e os de mais baixas inclinações voltaram-se para ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e louvores" (1448b24).

Tomei-me por espanto em vista dessa opinião, e por achar que não havia compreendido corretamente perguntei: "você quer dizer que o tipo de poesia escrita depende do caráter do poeta?" E ele educadamente respondeu: "vindas à luz a tragédia e comédia, os poetas, conforme a própria índole os atraía para este ou aquele gênero de poesia, uns, em vez de jambo, escreveram comédias, outros, em lugar de epopéias, compuseram tragédias por serem mais estimáveis do que as primeiras" (1449a1).

Agradecido pela excelente conversa, recolhi-me e refleti sobre a questão levantada pelo toninho. Partindo da idéia de Aristóteles, a questão não está em ser mais fácil ou difícil desdenharmos das pessoas, pois isso depende de nossa índole. O problema não está em rirmos das coisas cômicas, mas se isso tem sido o combustível para nossos momentos de alegria, e como nos portamos na presença de alguém que recebe elogios ou chacotas. Ao desdenharmos estamos revelando a mesquinhez de nosso ser, enquanto que ao elogiarmos demonstramos toda a nossa grandeza de caráter.

Recordo agora de um versículo bíblico, que me parece estar em sintonia com Aristóteles: "O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração, e o homem mau tira coisas más do mal que está em seu coração, porque a sua boca fala do que está cheio o coração" (lucas 6.45).

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posted by rafael at 01:41 | Permalink | 2 teste tua chave
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2.11.06
crer num grande amor
Há um ano aproximadamente, quanto eu ainda tinha um outro blog, uma leitora perguntou se eu acreditava no amor após ter lido um texto no qual eu mencionava algo sobre isso. Ela argumentava que falar de amor hoje já estava ultrapassado e bastava olhar como a palavra está desgastada e carente de significado para perceber como não faz mais sentido lutar pela causa de amar, ou acreditar na existência de um grande amor.

Depois de passado um ano e algumas horas dessa madrugada perambulando pela casa e rolando na cama - e nem sei se ela continua lendo meus esporádicos textos -, alguma coisa aconteceu na minha cabeça - e eu que estou querendo sair dela - e uma resposta se formou (meio cartesiano esse método, não?!?!).

De certa forma concordo com o problema por ela apresentado em relação ao amor. Certamente a palavra está vazia de significado, ou melhor, está tão cheia de significados que se torna impossível significar alguma coisa. Para quem tem alguma dúvida sobre esse fato, basta passar um dia ouvindo uma rádio especializada em música sertaneja, ou então ficar uma noite zanzando por aí para ver o que as pessoas dizem ser o "amor".

Mas ainda assim eu continuo crendo no amor, apesar dos altos e baixos - ultimamente mais baixos do que altos - pelos quais tenho passado. E creio por dois motivos: 1) o amor é uma espera ativa; 2) o amor ganha significado no corpo.

Penso que a maior parte das pessoas esperam um grande amor, e isso pode ter várias causas: assitir muitos filmes, ler muitas histórias, e acreditar no provérbio "quem espera sempre alcança". Mas vale lembrar que filmes são filmes, histórias são histórias e quem espera demais nunca alcança, ou, pra não ser tão pessimista, alcança tarde demais.

Mas a causa principal está na forma como compreendemos a espera. Geralmente ela é vista "passivamente", isto é, sentar e ver o que acontece. E no final das contas, o que de fato acontece é quem está de pé sempre entra antes e pega assento no ônibus - isso quando não ocorre de dormirmos sentado no ponto e perdê-lo.

Por isso esperar um grande amor exige uma espera ativa. É tipo esperar para entrar na faculdade - a gente espera estudando, ou esperar para entrar no emprego dos sonhos - a gente espera construíndo um currículo, ou esperar para ser magro - a gente espera fazendo regime. Esperar um grande amor é buscar nos transformarmos em pessoas melhores, e fazer o mesmo com quem amamos. Transformar o outro numa pessoa melhor, nos torna pessoas melhores, e esse movimento é o mínimo exigido pelo amor.

E quando procuramos transformarmos uns aos outros damos significado à palavra amor. A grande questão hoje é que se canta amor, se escreve amor, se fala amor, se pensa amor, se sonha amor, mas não se vive amor. Já escrevi a algum tempo sobre existir apenas provas de amor, concordando com a música dos Titãs.

Toda palavra somente tem significado quando ela ganha "carne" em nosso corpo. Que adianta falar de carinho se não nos tocamos? E falar de saudade se não damos notícia? De simpatia se não sorrimos e empatia se não choramos juntos? Nosso corpo é sem sentido por ausência de palavras, nossas palavras sem sentido por ausência de um corpo, e tudo isso torna a vida sem sentido e os sentidos sem vida alguma.

Se creio na existência de um grande amor? Sim, e não apenas de "um grande amor", mas de "vários grandes amores". Porque não estou disposto a esperar sentado por um, mas desejoso em transformar a todos em amantes, e não apenas cantando, recitando ou pensando, mas fazendo do meu corpo um grande texto vivo.

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1.11.06
assim como o poeta
Queria pensar assim como pensou o poeta: nada de cabeça - tudo de sensações...

IX - Sou um Guardador de Rebanhos

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Alberto Caeiro

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