5.11.06
por que é mais fácil desdenhar do que elogiar?
Numa de nossas produtivas conversas de república, o toninho surgiu com a seguinte questão: "porque é mais fácil desdenharmos de alguém do que proferir elogios?" (é claro que não foram essas as exatas palavras. O floreamento aqui é somente para fins literários). Recordo apenas que as repostas foram: "é verdade"; "boa pergunta" e "pois é, não deveria ser assim". Por esses dias, Aristóteles, enquanto conversavamos por meio da obra "Poética", ofereceu-me uma possível resposta.

Estavamos divagando sobre sua concepção de poesia, e duas espécies da sua chamada "poesia imitativa" clamaram por minha atenção: a comédia e a tragédia. Ele me dizia sobre a tragédia: "é pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o 'terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções'" (1449b24). "A epopéia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitação de homens superiores" (1449b9). E sobre a comédia ele explicou: "A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; quem bem demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor" (1449a32).

Fiquei interessado, principalmente com aquela história de "imitação", e perguntei o que ele queria significar com isso. Aí me disse: "Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso dos difere dos outros viventes, pois, de todos, ele é o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado" (1448b4). Então me caiu a ficha: a poesia nasce da imitação de algo vivencial do ser humano; os poetas imitam a vida.

E percebi que a comédia sempre imita um certo tipo de pessoa. E ele confirmou isso: "mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou baixa índole (porque a variedade de caracteres só se encontra nestas diferenças [e, quanto a caráter, todos os homens se distinguem pelo vício ou pela virtude]), necessariamente também sucederá que os poetas imitam homens melhores, piores, ou iguais a nós, como fazem os pintores" (1448a1).

Assim ficou fácil perceber que a diferença entre a tragédia e a comédia estava no tipo de pessoa que elas imitam, e assim ele confirmou: "pois a mesma diferença separa a tragédia da comédia; procura, esta, imitar os homens piores, e aquela melhores do que eles ordinariamente são" (1448a16).

Logo que ele me disse isso, eu sorri e disse: acho que você tem razão, pois não lembro de ter visto algum tipo de comédia, seja em filme, livro ou piadas que se refira a algo nobre no ser humano. Ela sempre enfatiza a desgraça, o defeito, as trapalhadas, efim, tudo aquilo que ridiculariza a pessoa. E acrescentei: mas a comédia somente é engraçada quando se refere a alguém que não seja nós. São raras as ocasiões que fazemos comédia com nossa própria pessoa.

E ele acrescentou: "A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]. Os de mais alto ânimo imitam as ações nobres e das mais nobres personagens; e os de mais baixas inclinações voltaram-se para ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e louvores" (1448b24).

Tomei-me por espanto em vista dessa opinião, e por achar que não havia compreendido corretamente perguntei: "você quer dizer que o tipo de poesia escrita depende do caráter do poeta?" E ele educadamente respondeu: "vindas à luz a tragédia e comédia, os poetas, conforme a própria índole os atraía para este ou aquele gênero de poesia, uns, em vez de jambo, escreveram comédias, outros, em lugar de epopéias, compuseram tragédias por serem mais estimáveis do que as primeiras" (1449a1).

Agradecido pela excelente conversa, recolhi-me e refleti sobre a questão levantada pelo toninho. Partindo da idéia de Aristóteles, a questão não está em ser mais fácil ou difícil desdenharmos das pessoas, pois isso depende de nossa índole. O problema não está em rirmos das coisas cômicas, mas se isso tem sido o combustível para nossos momentos de alegria, e como nos portamos na presença de alguém que recebe elogios ou chacotas. Ao desdenharmos estamos revelando a mesquinhez de nosso ser, enquanto que ao elogiarmos demonstramos toda a nossa grandeza de caráter.

Recordo agora de um versículo bíblico, que me parece estar em sintonia com Aristóteles: "O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração, e o homem mau tira coisas más do mal que está em seu coração, porque a sua boca fala do que está cheio o coração" (lucas 6.45).

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2 Comments:


At 05 novembro, 2006 09:21, Anonymous Anônimo

Poderia alguém alguém ser dado a elogiar com motivações circulam pela mesma mesquinhez?

 

At 05 novembro, 2006 17:24, Blogger rafael

Certamente Max, e até creio que existe um número considerável de pessoas mesquinhas e abeis em elogiar.
Mas o intuito do texto não é levantar questões sobre as motivações de outros, mas sobre nós mesmos. Se o mesquinho ler o texto e refletir sobre si estarei feliz.
Cá entre nós: sabemos que muitos dos elogios que recebemos possuem um auto teor de inveja, e inveja de maneira alguma pretende ser boa, assim como o invejoso não o é.

abraços e obrigado pelas visitas

 


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