4.4.08
primeiro amor - beckett (I)
Epitáfio:
"Aqui jaz quem daqui tanto escapou
Que só agora não escape mais"

"Mas aos vinte e cinco anos ele ainda está sujeito à ereção, o homem moderno, fisicamente também, de vez em quando, é o quinhão de cada um, nem eu estava imune, se é que aquilo pode ser chamado de ereção. Ela percebeu, naturalmente, as mulheres farejam um falo no ar a mais de dez quilômetros e se perguntam, Como é que aquele ali me descobriu? Não somos mais nós mesmos, nessas condições, e é penoso não ser mais você mesmo, ainda mais penoso do que sê-lo, apesar do que dizem. Pois quando o somos, sabemos o que temos que fazer para sê-lo menos, ao passo que quando não o somos mais somos qualquer um, não há mais como nos apagar. O que se chama amor é o exílio, com um cartão-postal da terra natal de vez em quando, foi esse meu sentimento naquela noite."

"É incrível como as pessoas repetem o que acabamos de lhes dizer, como se corressem o risco de ir para a fogueira ao acreditar em seus próprios ouvidos. Disse para ela vir de vez em quando. Eu conhecia mal as mulheres, naquela época. Ainda as conheço mal, aliás. Os homens também. Os animais também. O que conheço menos mal são minhas dores. Penso nelas todas, todos os dias, é rápido, o pensamento vai tão depressa, mas elas não vêm todas do pensamento. Sim, há momentos, principalmente à tarde, em que me sinto sincretista, à maneira de Reinhold. Que equilíbrio. Aliás, conheço mal também minhas dores. Isso deve ser porque não sou apenas dor. Aí está a astúcia. Então me afasto, até o espanto, até a admiração, como de um outro planeta. Raramente, mas é o bastante. Nada cretina, a vida. Ser apenas dor, como simplificaria as coisas! Ser todo-dolente! Mas isso seria concorrência, e desleal. Eu lhes contaria assim mesmo, um dia, se me lembrar, e tomara que consiga, minhas estranhas dores, em detalhes, e distiguindo-as bem, para maior clareza. Falarei das dores do entendimento, as do coração ou afetivas, as da alma (muito simpáticas, as da alma), e depois as do corpo, primeiro as internas ou ocultas, depois as da superfície, começando pelos cabelos e descendo metodicamente e sem pressa até os pés, abrigo dos calos, cãibras, joanetes, unhas encravadas, frieiras, pés-de-atleta e outras esquisitices. E àqueles que forem gentis o bastante para me escutar contarei na mesma ocasião, de acordo com um sistema cujo autor não me recordo, os instantes que, sem estar drogado, nem bêbado, nem em êxtase, não se sente nada."

Samuel Beckett. Primeiro Amor. Cosac Naify, 2004.

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posted by rafael at 09:00 | Permalink |


2 Comments:


At 05 abril, 2008 15:42, Anonymous Anônimo

É muito simbólico a pele ser o maior órgão do corpo humano. Somos assim um tapete ambulante de sentir coisas. Gosto disso. Mesmo com as dores. E apesar dos tesões sem hora marcada, até porque não é só o homem que se perde de si em certos momentos.

 

At 06 abril, 2008 11:29, Blogger Flavia

E vou estar esperando pra ouvir todas as tuas dores...

Bjocas

 


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