2.12.07
como pode ser horrível ter os sonhos realizados se a nossa frustação é justamente não conseguir torná-los reais?!?!
_Fujam! Virem o navio e fujam! Remem para longe desta maldita terra! Salvem suas vidas!
_Acalme-se - disse Ripchip - e diga-nos qual é o perigo. Não temos o
hábito de fugir. O estranho estremeceu terrivelmente ao ouvir a voz do rato, no qual ainda não havia reparado.
_Seja como for, têm de fugir - arquejou. - Esta é a ilha onde os Sonhos se
tornam realidade.
_É a ilha que eu procuro há muito tempo - disse um dos marinheiros. - Se tivesse desembarcado aqui, já estaria casado com Alice.
_E eu teria encontrado Tomás vivo - disse o outro.
_Loucos! - vociferou o homem, batendo com os pés no chão num acesso de
raiva. - Por causa de disparates como esses vim parar aqui, e seria melhor ter
morrido afogado ou nunca ter nascido. Ouvem bem o que digo? Aqui os sonhos tornam-se vivos e reais. Não os devaneios; os sonhos.

Esse é um trecho do livro A Viagem do Peregrino da Alvorada de C.S. Lewis. É o quinto livro da série que compõe As crônicas de Nárnia, cuja história está sendo passada para as telas do cinema, pela Disney. Permita-me contextualizar você a esse trecho, para evitar a idéia de que estou achando chifre na cabeça de burro.

Os heróis da história lançaram-se ao mar na busca de amigos desaparecidos. A rota da viagem é conhecida somente em sua primeira metade, sendo o restante desconhecido e temido por todos os habitantes de Nárnia. Conforme avançam, os aventureiros descobrem toda a magia que ronda as várias ilhas desconhecidas. Nesse capítulo, os heróis chegam à ilha batizada de 'A Ilha Negra', porque aí dominava completa escuridão, onde "o mar e o céu desapareceram, e a única coisa que indicava onde terminava o navio era a lanterna da popa".

No trecho acima, os aventureiros acabam de resgatar um habitante da ilha, que, ao ouvir o navio, clamava: "Piedade! - gritou a voz. - Piedade! Mesmo que vocês sejam um sonho, piedade! Levem-me a bordo, mesmo que seja para me matar! Mas não desapareçam, pelo amor de Deus, não me deixem nessa terra horrível!"

É claro que não posso deixar de me perguntar assim como tripulantes do navio assim fizeram ao ouvir o alerta do resgatado: como pode uma terra que torna os sonhos em realidade ser um local horrível?!?! Como pode ser horrível ter os sonhos realizados, se a nossa frustação é justamente não conseguir torná-los reais?!?! E a resposta de nosso amigo desnuda por completo os marinheiros, revelando que seus tão pretensos sonhos não passavam de devaneios. E o que levou o resgatado chegar a essa conclusão? Passar sete anos morando sozinho na completa escuridão.

Não recordo de Lewis ter tido algum dia contato com a psicanalise, mas ele acertou em cheio. Aquilo que achamos ser sonhos não passam de fantasias criadas para tentar mascarar um pouco nossa injusta e doentia realidade, um meio pelo qual podemos imaginar um mundo que se adeque aos nossos desejos. E aquilo que achamos ser sonho jamais podem ser negativos, nunca. Esses são chamados pesadelos. Os sonhos guardamos; os pesadelos apagamos.

Mas a psicanalise diz que o sonho é a via de escape do inconsciente. O inconsciente é a caixinha na qual guardamos tudo aquilo que não queremos que permaneça no consciente. E essa caixinha é aberta quando dormimos....na escuridão. Ao dormir corremos o risco de lembrar daquilo que queremos esquecer. Talvez esse seja o motivo de nosso medo do escuro. Temos medo de encontrar um fantasma que ronda nossas lembranças.

Não posso deixar de evocar uma pergunta de Sponville: "Quando estou sozinho na floresta, tenho medo por estar sozinho ou por ter alguém comigo?" E me concedo a liberdade de parodia-lo: "Quando estou sozinho no escuro, tenho medo por estar sozinho ou por estar acompanhado dos meus sonhos?" Por isso acredito ser muito corajoso aquele que deseja ter seus sonhos realizados, pois esse tem coragem de encarar a si. Enquanto isso a maioria se frusta por não ter seus devaneios realizados, e sinto dizê-lo que nunca serão, pois não passam de fantasias.

A acolhida dos marinheiros frente ao alerta do resgatado não poderia expressar melhor esse medo de encarar a si:

_Continuem a remar - bradou Caspian. - Remem por suas vidas. Sempre em linha reta, Driniam. Pode dizer o que você quiser Rip. Há coisas que um homem não pode enfrentar.



texto reciclado. desculpem!

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posted by rafael at 23:40 | Permalink |


4 Comments:


At 03 dezembro, 2007 01:28, Blogger Sandra Leite

Rafa

Lewis + Freud + você = Caixa de Pandora revirada....

linda reflexão!

beijokas

 

At 03 dezembro, 2007 17:14, Blogger Bridget Jones

Rafael,

Vim aqui por indicação da minha amiga Lady Newton. Ela me disse que vc tinha potencial psicanalítico e o divã com pelego do seu banner é muito elegante, sabe?

Passe lá para dar uma opinada sobre nossos casos clinicos. Postei o primeiro hoje! "Sou para-raio de doido!" espera sua visuta!

 

At 04 dezembro, 2007 14:53, Anonymous Anônimo

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Caramba Rafa,depois sou eu que sou exagerada.Você arrasa mesmo, pode acreditar nisso, gostei demais dessa reflexão:"Aquilo que achamos ser sonhos não passam de fantasias criadas..."Hj tenho questionado meus sonhos,meus anseios,será que eles podem ser realizados?E se forem, me trarão real satisfação?Não sei, fico a me questionar. Precisamos de muito pouco para sermos felizes e as vezes ficamos desejando o utópico...


Bjo

 

At 05 dezembro, 2007 02:01, Blogger rafael

Sandra
caixa de pandora revirada? Minha nossa!!!!! rs
bjus
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Bridget Jones
O divã no meu blog é elegante mesmo. É uma "chaise longue Le Corbusier", homonimo de um dos grandes arquitetos do século XX, pois foi projetada pelo dito cujo. Vai dizer que não é chique! rs

Visitarei a clinica, mas sobre psicanalise sou apenas palpiteiro!
bjin
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Realmente não podemos confundir sonho com utopia. Mas a utopia é o guia dos sonhos....Sabe o que eu acho: o tamanho do sonho equivale a frustração de não realiza-lo. Assim podemos medir até que ponto é sonho ou utopia.
bjus

 


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