24.2.07
ler: uma disciplina espiritual
Estou revisitando alguns dos meu tutores espirituais. Deixei-os de lado por um tempo tentando traçar sozinho os meus caminhos. Mas não adianta, é preciso render-se ao fato de que, se tratando das coisas da vida, sou apenas um iniciante.
Quero partilhar com você uma meditação de Thomas Merton, monge trapista, sobre a disciplina da leitura. Independente das questões religiosas envoltas, espero que assim como eu você possa ver na arte de ler, além de um modo de aquisição de conhecimento e cultura, um momento místico de transcendência e interpenetração.
E atenção: não se trata apenas de uma leitura: é uma meditação. Por isso, disponha-se a ler e não apenas passar os olhos ;-)

Ler deveria constituir um ato de homenagem ao Deus de tôda Verdade.

Abrimos nossos corações a palavras que refletem a realidade por Êle criada ou a maior realidade que é Êle mesmo. É também um ato de humildade e reverência para com outros homens, que são instrumentos por meio dos quais Deus nos comunica a sua verdade.

A leitura dá a Deus maior glória quando a aproveitamos melhor, quando é um ato mais profundamente vital, não só da nossa inteligência, mas de toda a nossa personalidade, absorvida e refeita na reflexão, na meditação, na oração, ou até mesmo na contemplação de Deus.

Os livros podem falar-nos como a voz de Deus, ou a dos homens, ou como a algazarra da cidade em que vivemos. Falam-nos com a voz de Deus quando nos trazem luz e paz e nos enchem de silêncio. Falam-nos com a voz de Deus quando desejamos nunca dêles nos separar. Falam-nos com a voz dos homens quando sentimos desejo de ouvi-los novamente. Falam-nos como a algazarra da cidade quando nos mantêm presos por uma lassidão que nada nos comunica, não nos dão paz, nem confôrto e, no entanto, não nos deixam escapar ao seu engôdo.

Livros que falam com a voz de Deus fazem-no com demasiada autoridade para nos divertir. Os que falam com a voz de homens bons, nos atraem pelo seu encanto humano; cresecemos encontrando nêles nossa semelhança. Ensinam-nos a melhor nos conhecer reconhecendo-nos num outro.

Livros que falam como a algazarra das multidões nos reduzem ao desespêro pelo simples pêso do seu vácuo. Distraem-nos como as luzes das ruas da cidade à noite, com esperanças que não podem ser realizadas.

Por maiores e por mais amigos que nos possa ser os livros, não substituem, todavia, pessoas; são apenas meios de contacto com grandes personalidades, com homens que possuíam mais do que sua parte individual de humanidade, homens dotados de qualidades para o mundo inteiro e não apenas para si.

Idéias e palavras não constituem o alimento da inteligência, mas sim da verdade. E não uma verdade abstrata, que alimenta apenas o espírito. A Verdade que um homem espiritual busca é a Verdade total, realidade, existência e essência conjuntamente, algo que possa ser abraçado e amado, algo que possa receber a homenagem e o serviço de nossas ações; mais do que uma coisa, mas pessoas ou uma Pessoa. Aquêle cuja essência é sobretudo existir: Deus.

Cristo, a Palavra Encarnada, é o Livro da Vida. Nêle é que lemos Deus.

(Thomas Merton, Na liberdade da Solidão. Editora Vozes, 1961, p. 55s.)

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