Na tradição judaica, o relato da criação afirma a relação de “imagem e semelhança” (Gn. 1.26) entre o humano e Deus. Esta afirmação atenuava o conceito de transcendência divina. Deus não era o totalmente distante nem o absolutamente desconhecido; de certa maneira podia ser conhecido através do próprio humano.
A idéia da imagem e semelhança que aproximava Deus do humano e dignificava este foi paulatinamente esquecida. O judaísmo insistiu sempre na transcendência divina, isto é, na distância entre Deus e o humano. Este foi considerado sempre mau, indigno e um enorme pessimismo sobre a natureza humana constituía a nota característica e dominante da religião no tempo de Jesus.
A idéia derivante e cristalizada na teologia farisaica era a de um Deus distante e exigente, que olhava com benevolência os que observavam seus inúmeros preceitos e abominava e castigava os que não lhe obedeciam com minuciosa fidelidade. O povo doutrinado por seus dirigentes religiosos conservava a imagem do Deus distante, ciumento, cioso de sua soberania e objeto de temor.
É nessa perspectiva que se dá o encontro entre o escriba, também chamado de mestre da lei, com Jesus. Era o encontro para mais um confronto entre os defensores de Deus e um perturbador da ordem religiosa e social. A intenção do primeiro era revelar para o povo que Jesus não era o mestre que eles tanto aclamavam e que todos os seus ditos estavam indo contra as leis religiosas da época. Fica evidente esse desejo do escriba quando formula sua pergunta para Jesus. A lei, apesar da proibição do decálogo, era o objeto de veneração do alto escalão da religião judaica.
Interessante nessa passagem é a atitude de Jesus frente a pergunta. Em outros momentos de confronto com os doutores da lei, Jesus rebatia a questão com uma outra questão (cf. 11.28-30; 12.14-16). Nessa passagem, Jesus não devolve a pergunta, mas reponde-a, visto que entendia a importância dos mandamentos, ainda mais quando se questionava sobre o principal.
E talvez a palavra “principal” tenha levado a Jesus a responder de pronto. A lei continha o chamado código de santidade ou de pureza em virtude do qual, para manter a relação com Deus, era necessário precaver-se do contato com toda a realidade considerada impura. Desta exigência decorria um sem número de normas para garantir a pureza e de ritos para eliminar a impureza, fazendo com que a lei se tornasse o centro da vida religiosa em detrimento do relacionamento com Deus.
A lei, convertida em centro da vida religiosa, levava a conceber a relação com Deus em termos de obediência e não como entrega filial ou de fidelidade por amor. Deus se transformou no amo ou senhor que inspeciona o procedimento de seus servos. A relação vital com ele passa a ser jurídica e a experiência de Deus cede lugar ao ensinamento de um código.
Em várias passagens, Jesus censura os fariseus por causa do seu legalismo, que contradizia até mesmo as escrituras. Em Mc. 2.26 ele enuncia um princípio: o humano não é escravo do preceito, mas o preceito é dado para servir ao bem do humano. Retomando a concepção de “amaras, pois, o Senhor teu Deus”, Jesus quebra com a visão de Deus como um soberano que, por meio de seus preceitos, impunha sua vontade aos seus súditos. Essa concepção construia um conceito de pecado como transgressão da vontade divina, que sustentava toda a estrutura legalista da época.
E é justamente contra o desvio da concepção relacional com Deus, que Jesus retoma o primeiro mandamento.