Algumas pessoas consideram-me crítico, pois, para determinados assuntos tenho uma opinião aparentemente formada, para outros tenho algum tipo de contribuição a oferecer, e para a maioria ofereço apenas o silêncio. Por sinal, é graças ao silêncio na maioria dos assuntos que essa imagem de pessoa crítica coube como uma luva em mim...
Não me considero crítico, muito pelo contrário, sou até muito ingênuo. Se tenho opinião sobre algo, essa nem é minha, e sim oriunda de alguma leitura. Se fico em silêncio, não é por estar questionando ou desconfiado: é porque realmente não tenho nada a declarar e provavelmente estou acreditando em tudo o que é dito. E se tenho alguma opinião a oferecer, digo-a vacilando por receio de estar dizendo bobagem.
Quando comecei a cursar o ensino superior esta ingenuidade me incomodava. Ouvia os professores sempre opinando sobre algo, discordando dos autores e de outros professores e sempre dando um jeitinho de mostrar para o aluno que esse não sabe nada. Também observava meus colegas sempre opinando sobre músicas, filmes, livros, seja exaltando ou criticando. E eu, não sabia de nada! Todos tinham algum tipo de senso de crítico e eu sempre ouvia e calava. Considerei-me um bobão.
Comecei a achar minhas leituras infrutíferas, improdutivas, visto que nunca tinha nada a acrescentar sobre o lido. Senti-me um papagaio, pois o que apenas fazia era reproduzir as palavras do escritor. Pensei ser um menino ingênuo que sempre acredita nas histórias fantásticas e fantasiosas contadas pelos mais velhos. Odiei minha ingenuidade até ler um ensaio de Emil Sinclair, pseudônimo de Hermann Hesse, intitulado "Sobre a leitura de livros". Nesse texto, Hesse classifica três tipos de leitores.
O primeiro é assim definido
Em primeiro lugar, há o leitor ingênuo (...) Este leitor devora um livro como se fosse uma refeição, é apenas um receptor, ele come e se satura como um garoto se empanturra com um livro sobre índios, ou uma criada com um romance sobre condenssas, ou um estudante com Schopenhauer. Este leitor não se relaciona com o livro como uma pessoa, mas sim como um cavalo com a manjedoura, ou um cavalo com o cocheiro; o livro dirige e o leitor obedece (...) Este leitor assume sem questionar que um livro existe única e exclusivamente para ser lido com fidelidade e atenção, para ser apreciado em todo seu conteúdo ou forma.
Em segundo lugar, Hesse escreve:
Desde que o homem siga sua natureza e não sua formação cultural, ele se torna criança e começa a brincar com as coisas, o pão se transforma numa montanha onde se fura um túnel, a cama numa caverna, num jardim, num campo nevado. O segundo tipo de leitor mostra um pouco desse gênio brincalhão, dessa infantilidade. Este leitor não aprecia nem o conteúdo nem a forma de um livro como seus valores únicos e mais importantes. Ele sabe, como as crianças também sabem, que qualquer coisa pode ter dez, cem significados e sentidos.
E em terceiro
Passemos agora ao terceiro e último grupo. Pelo visto, este é exatamente o contrário do que se poderia chamar de "bom leitor". O terceiro tipo tem tanta personalidade, é tão individualista que se coloca diante da leitura completamente descompromissado. Ele não quer nem se ilustrar e nem se divertir, usa um livro como usaria qualquer outro objeto do mundo, para ele é apenas um ponto de partida e um estímulo. No fundo é indiferente ao que lê. (...) Ele é criança no sentido em que valoriza muito o pensamento associativo, só que conhece o outro também. No momento em que nossa fantasia e capacidade de associação está no auge, já não lemos mais o que está escrito no papel, mas nos deixamos levar pelos estímulos e idéias que nos chegam da leitura.
Hesse não diz qual grupo exercita corretamente a leitura. Para ele cada um de nós se encontra num determinado grupo variando o momento, e depois passamos a outro. Ele apenas chama a atenção para a permanência por muito tempo no terceiro grupo, pois nesse, ao invés de lermos, viajamos para fora do livro.
Depois disso acalentei-me e satisfiz-me com o fato de não ser um crítico. Quer dizer, um crica. Porque para Hesse até mesmo o crítico, quando realmente crítico e não um crica, exerce a leitura.
Gostaria de terminar com o conselho deixado pelo autor na conclusão de seu ensaio:
Qualquer leitor, de qualquer área, pode variar entre os três níveis. Você pode ocupar esse mesmos três níveis com milhares de subníveis na área da arquitetura, da pintura, da zoologia, e da história. Em qualquer área, nesses três níveis em que você é você mesmo, deixará de ser leitor, a obra literária será dissolvida e a história universal também. Mas mesmo assim, sem penetrar conscientemente nesses níveis, você lerá todos os livros, todas as ciências e artes sempre como um aluno lê a gramática.
(Hermann Hesse, O Caderno de Sinclair, Record)
Não me considero crítico, muito pelo contrário, sou até muito ingênuo. Se tenho opinião sobre algo, essa nem é minha, e sim oriunda de alguma leitura. Se fico em silêncio, não é por estar questionando ou desconfiado: é porque realmente não tenho nada a declarar e provavelmente estou acreditando em tudo o que é dito. E se tenho alguma opinião a oferecer, digo-a vacilando por receio de estar dizendo bobagem.
Quando comecei a cursar o ensino superior esta ingenuidade me incomodava. Ouvia os professores sempre opinando sobre algo, discordando dos autores e de outros professores e sempre dando um jeitinho de mostrar para o aluno que esse não sabe nada. Também observava meus colegas sempre opinando sobre músicas, filmes, livros, seja exaltando ou criticando. E eu, não sabia de nada! Todos tinham algum tipo de senso de crítico e eu sempre ouvia e calava. Considerei-me um bobão.
Comecei a achar minhas leituras infrutíferas, improdutivas, visto que nunca tinha nada a acrescentar sobre o lido. Senti-me um papagaio, pois o que apenas fazia era reproduzir as palavras do escritor. Pensei ser um menino ingênuo que sempre acredita nas histórias fantásticas e fantasiosas contadas pelos mais velhos. Odiei minha ingenuidade até ler um ensaio de Emil Sinclair, pseudônimo de Hermann Hesse, intitulado "Sobre a leitura de livros". Nesse texto, Hesse classifica três tipos de leitores.
O primeiro é assim definido
Em primeiro lugar, há o leitor ingênuo (...) Este leitor devora um livro como se fosse uma refeição, é apenas um receptor, ele come e se satura como um garoto se empanturra com um livro sobre índios, ou uma criada com um romance sobre condenssas, ou um estudante com Schopenhauer. Este leitor não se relaciona com o livro como uma pessoa, mas sim como um cavalo com a manjedoura, ou um cavalo com o cocheiro; o livro dirige e o leitor obedece (...) Este leitor assume sem questionar que um livro existe única e exclusivamente para ser lido com fidelidade e atenção, para ser apreciado em todo seu conteúdo ou forma.
Em segundo lugar, Hesse escreve:
Desde que o homem siga sua natureza e não sua formação cultural, ele se torna criança e começa a brincar com as coisas, o pão se transforma numa montanha onde se fura um túnel, a cama numa caverna, num jardim, num campo nevado. O segundo tipo de leitor mostra um pouco desse gênio brincalhão, dessa infantilidade. Este leitor não aprecia nem o conteúdo nem a forma de um livro como seus valores únicos e mais importantes. Ele sabe, como as crianças também sabem, que qualquer coisa pode ter dez, cem significados e sentidos.
E em terceiro
Passemos agora ao terceiro e último grupo. Pelo visto, este é exatamente o contrário do que se poderia chamar de "bom leitor". O terceiro tipo tem tanta personalidade, é tão individualista que se coloca diante da leitura completamente descompromissado. Ele não quer nem se ilustrar e nem se divertir, usa um livro como usaria qualquer outro objeto do mundo, para ele é apenas um ponto de partida e um estímulo. No fundo é indiferente ao que lê. (...) Ele é criança no sentido em que valoriza muito o pensamento associativo, só que conhece o outro também. No momento em que nossa fantasia e capacidade de associação está no auge, já não lemos mais o que está escrito no papel, mas nos deixamos levar pelos estímulos e idéias que nos chegam da leitura.
Hesse não diz qual grupo exercita corretamente a leitura. Para ele cada um de nós se encontra num determinado grupo variando o momento, e depois passamos a outro. Ele apenas chama a atenção para a permanência por muito tempo no terceiro grupo, pois nesse, ao invés de lermos, viajamos para fora do livro.
Depois disso acalentei-me e satisfiz-me com o fato de não ser um crítico. Quer dizer, um crica. Porque para Hesse até mesmo o crítico, quando realmente crítico e não um crica, exerce a leitura.
Gostaria de terminar com o conselho deixado pelo autor na conclusão de seu ensaio:
Qualquer leitor, de qualquer área, pode variar entre os três níveis. Você pode ocupar esse mesmos três níveis com milhares de subníveis na área da arquitetura, da pintura, da zoologia, e da história. Em qualquer área, nesses três níveis em que você é você mesmo, deixará de ser leitor, a obra literária será dissolvida e a história universal também. Mas mesmo assim, sem penetrar conscientemente nesses níveis, você lerá todos os livros, todas as ciências e artes sempre como um aluno lê a gramática.
(Hermann Hesse, O Caderno de Sinclair, Record)